segunda-feira, 31 de março de 2008

Excepção à regra

És uma menina mimada. Sempre foste. Sempre serás. Sempre te encontraste, nesse teu mundo pequeno, no umbigo da festa e vestes esse papel de estrela para que consigas brilhar (mesmo que seja por pouco tempo), para que olhem sempre sempre só na tua direcção, quando esse teu estrelato já só é imaginário. Já não és nem tão especial nem tão importante quanto te julgas, já não és uma menina pequena. Não suportas que te contrariem, quase nunca suportaste, não admites que haja vida para além desse teu planeta falsamente pintado de cor-de-rosa, encenas, fazes fitas, birras, teimosias de criança que já não és mas teimas em parecer, inventas cenários e pões em cena personagens que nunca lá estiveram, só para que olhem para ti, só para justificar as tuas falhas, tudo em volta de uma fragilidade encenada - não és assim tão "boa menina" como queres parecer, ninguém o é, és tão naturalmente desumana como todas as pessoas a quem apontas o dedo. Exibes tudo o que não tens dentro de ti, escondes, teatralizas, imitas, exageras, gritas sob a forma mascarada de uma criança que já não és, nem nunca foste, uma falsa afectividade, uma bondade e passividade que já não convence senão os rostos novos. Há sempre qualquer problema, há sempre uma desculpa, uma culpa (que nunca é tua). Tudo para continuares a ser o que nunca vais ser, mesmo que o egocentrismo te leve a roubar fragmentos de histórias de outros. São sempre repetições, colagens, fotografias roubadas a outras vidas. O mesmo ciclo... a confrontação, a insuportável sensação de que não és uma estrela, as mesmas reacções, viciadas e repetitivas, a agressividade (in)disfarçada entre jogos infantis, o mesmo ciclo... Aos poucos, a máscara vai-te desvendando, vai-se diluindo entre o apertar do cerco, do círculo que criaste para viver, e os lugares vazios em frente ao palco. Quando deixas de ouvir as palmas, volta tudo ao mesmo, as mesmas falas, as mesmas deixas para as pessoas que te estão próximas e que te mantêm no estrelato fictício. As mesmas que gostam de ti e te aplaudem. Uma voz diferente e o teatro começa, o mesmo ciclo...
As pessoas para ti são meras marionetas.


(apesar de não mereceres já, hoje apeteceu-me ser sincera)

sábado, 29 de março de 2008

Conversas banais (excerto um)

"Que flor tão linda...!"
"Só vais dizer isso?"
"Não tenho nada para dizer... já te disse tudo... Olha..."
"Hmm."
"Faz-me um desenho no umbigo."
"O que queres que desenhe?"
"Uma rosa."
"Como a que te dei?"
"Não... outra, negra, tu sabes..."
"A negro... ok, deita-te aí. Vou escolher a caneta."
"Desenha a rosa mais imperfeita de todas e a mais bonita. Aqui, ao pé do umbigo."
"Aqui?"
"Sim."
"Desabotoa as calças. Vou buscar água, venho já."
"Não."
"Estás com vergonha?"
"Sim..."
"Oh, porquê?"
"Porque sim."
"Estás com medo?"
"Não. Porquê?"
"Estás a morder o lábio e a olhar para baixo."
"Estou chateada..."
"Comigo?"
"Não! Comigo..."
"Então?"
"A minha vida está um dominó, se cai uma peça, cai tudo."
"E qual é essa peça que não pode cair?"
"Tu."

terça-feira, 25 de março de 2008

O teu silêncio

Ouves esse silêncio entre o meu rosto e o teu? O silêncio entre nós... esse bater de asas presas, sufocado e perpetuado no vazio.
Ouves as nossas vozes entrelaçadas?
Ouves os nossos abraços eternos e invisíveis, as palavras cúmplices no medo da luz e da lucidez, feitos sons enfeitiçados?
Ouves o meu coração gritar, preso em fitas de cetim sempre que (pensava que) estavas ao meu lado?
Ouves a voz que nos embalava sempre que chorava ao teu lado, lágrimas feitas estrelas de um céu que inventavas para me acalmar, para te acalmares, para fugirmos?

(É o teu silêncio que hoje trago nas minhas mãos fechadas... como uma concha do mar... )

Ouves os nossos pés chapinharem num caminho cheio de fios de água salgada e os nossos dedos entrelaçados, as palmas das mãos unidas como uma concha que esconde um segredo?
Ouves esse segredo sussurrado numa promessa que nunca cumprimos?

Ouves?
... eu já não consigo ouvir nada senão o teu silêncio ensurdecedor.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Os pés. Nus. No chão.

Os pés nus no chao. O espelho. No espelho, o reflexo dela. Ela estava nua em frente ao espelho, com os olhos imóveis e abertos, indiferentes, atentos, mortos ou ausentes. Os braços caídos ao longo do corpo, das curvas e dos recortes dos ossos. A pele muito clara, pálida. Entre as pernas, um fio de sangue vermelho vivo escorria a um ritmo sarcástico e demorado, contornando o traço magro e feminino do joelho e do tornozelo até ao pé nu. Serpenteando desenhos quase perfeitos, carmim, na brancura marmoreada da pele. Ele apareceu atrás dela e abraçou-a como se fosse sua, como se ela fosse de alguém, como se ela fosse Só sua. Apertou-a com força, marcando o próprio corpo no dela, pouco ausente do vazio que gritava dentro dela. Apertava-a para o calar. Apertava-a para a deixar respirar. Com as mãos no corpo dela como portas fechadas. (E) Os pés nus no chão.

domingo, 23 de março de 2008

Desenhos de memórias

Deitado, olhava para o tecto do quarto, branco, três estrelas fluorescentes numa das paredes, um estirador branco com folhas desenhadas com tinta da china, em cima, uma mesa com um computador desligado, um armário com a porta semi-aberta, uma prateleira com cds. No chão, a um canto, uma manta cor-de-laranja e 3 ou 4 almofadas coloridas, uns chinelos pretos e as botas que ela tinha calçado. Na cadeira, um casaco preto, uma t-shirt cor-de-rosa (há muito tempo que não a via vestida de cor-de-rosa, talvez desde criança). Uma estante cheia de livros, cujos títulos não conseguia ler com a escassa luz do quarto, um cheiro doce de perfume - o perfume dela, que ele absorvia e se entrelaçava em milhares de fios dentro de si.

(...)

"Imagina... estamos deitados na relva, à noite, numa floresta, com árvores muito altas à nossa volta, uma noite quente e a relva e as árvores protegiam-nos. Lá ao fundo, um lago, uma coruja a olhar para nós, a ver-nos, a guardar-nos, toda branca e com manchas cinzentas, de olhos amarelos. "

"Olha para nós porquê?"

"Olha para ti, porque és bonito. Tem um olho fechado e outro aberto."

"Sou bonito?"

"Muito."

sábado, 22 de março de 2008

Intro (inverso)

O silêncio desabava como sangue a escorrer pelas paredes. O quarto invadido de vozes e sombras, restos de memórias, desespero, imagens que ninguém queria ver, um grito mudo, sempre mudo no auge da violência.
Ela cedia, pela primeira vez, à violência do grito mudo.